Como
esses primitivos que carregam por toda parte o
maxilar
inferior de seus mortos,
assim
te levo comigo, tarde de maio,
quando,
ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra
chama, não perceptível, tão mais devastadora,
surdamente
lavrava sob meus traços cômicos,
e
uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e
condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma
nunca
antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem
fruto.
Mas
os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita,
fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu
nada te peço a ti, tarde de maio,
senão
que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal
de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se
em sinal de beleza no rosto de alguém
que,
precisamente, volve o rosto e passa…
Outono
é a estação em que ocorrem tais crises,
e
em maio, tantas vezes, morremos.
Para
renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já
então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo
na sombra a aderência das resinas fúnebres
com
que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre,
tarde de maio, em que desaparecemos,
sem
que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E
os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso,
arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem
houve testemunha.
Nunca
há testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem
reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se
morro de amor, todos o ignoram
e
negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O
próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não
está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das
impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida
no ar, por que melhor se conserve,
uma
particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.
Carlos
Drummond de Andrade
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