Mostrando postagens com marcador Vicente de Carvalho-Poesia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Vicente de Carvalho-Poesia. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Olhos Verdes


I

Olhos encantados, olhos cor do mar
Olhos pensativos que fazeis sonhar!

Que formosas coisas, quantas maravilhas
Em vos vendo sonho, em vos fitando vejo:
Cortes pitorescos de afastadas ilhas
Abanando no ar seus coqueirais em flor,
Solidões tranqüilas feitas para o beijo,
Ninhos verdejantes feitos para o amor...

Olhos pensativos que falais de amor!

Vem caindo a noite, vai subindo a lua...
O horizonte, como para recebê-las,
De uma fímbria de ouro todo se debrua;
Afla a brisa, cheia de ternura ousada,
Esfrolando as ondas, provocando nelas
Bruscos arrepios de mulher beijada...

Olhos tentadores da mulher amada!

Uma vela branca, toda alvor, se afasta
Balançando na onda, palpitando ao vento;
Ei-la que mergulha pela noite vasta,
Pela vasta noite feita de luar;
Ei-la que mergulha pelo firmamento
Desdobrado ao longe nos confins do mar...

Olhos cismadores que fazeis cismar!

Branca vela errante, branca vela errante,
Como a noite é clara! como o céu é lindo!
Leva-me contigo pelo mar... Adiante!
Leva-me contigo até mais longe, a essa
Fímbria do horizonte onde te vais sumindo
E onde acaba o mar e de onde o céu começa...

Olhos abençoados, cheios de promessa!

Olhos pensativos que fazeis sonhar,
Olhos cor do mar!


Vicente de Carvalho

In Rosa, Rosa de Amor, 1923

Palavras ao Mar


Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pelo!
Junto da espuma com que as praias bordas,
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas – a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.

Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras;
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro:
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...

É o tempo em que adormeces
Ao sol que abrasa: a cólera espumante,
Que estoura e brame sacudindo os ares,
Não os sacode mais, nem brame e estoura;
Apenas se ouve, tímido e plangente,
O teu murmúrio; e pelo alvor das praias,
Langue, numa carícia de amoroso,
As largas ondas marulhando estendes...

Ah! Vem daí por certo
A voz que escuto em mim, trêmula e triste,
Este marulho que me canta na alma,
E que a alma jorra desmaiado em versos;
De ti, de ti unicamente, aquela
Canção de amor sentida e murmurante
Que eu vim cantando, sem saber se a ouviam,
Pela manhã de sol dos meus vinte anos.

Ó velho condenado
Ao cárcere das rochas que te cingem!
Em vão levantas para o céu distante
Os borrifos das ondas desgrenhadas.
Debalde! O céu cheio de sol se é dia,
Palpitante de estrelas quando é noite,
Paira, longínquo e indiferente, acima
Da tua solidão, dos teus clamores...

Condenado e insubmisso
Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo
Uma alma sobre a qual o céu resplende
- Longínquo céu – de um esplendor distante.
Debalde, ó mar que em ondas te arrepelas,
Meu tumultuoso coração revolto
Levanta para o céu, como borrifos,
Toda a poeira de ouro dos meus sonhos.

Sei que a ventura existe,
Sonho-a; sonhando a vejo, luminosa,
Como dentro da noite amortalhado
Vês longe o claro bando das estrelas;
Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas
Da alma entreabrindo, subo por instantes...
Ó mar! A minha vida é como as praias,
E o sonho morre como as ondas voltam!

Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pelo!
Ouço-te às vezes, revoltado e brusco,
Escondido, fantástico, atirando
Pela sombra das noites sem estrelas
A blasfêmia colérica das ondas...

Também eu ergo às vezes
Imprecações, clamores e blasfêmias
Contra essa mão desconhecida e vaga.
Que traçou meu destino... Crime absurdo
O crime de nascer! Foi o meu crime.
E eu expio-o vivendo, devorado
Por essa angústia do meu sonho inútil.
Maldita a vida que promete e falta,
Que mostra o céu prendendo-nos à terra,
E, dando as asas, não permite o vôo!

*
 Ah! cavassem-te embora
O túmulo em que vives – entre as mesmas
Rochas nuas que os flancos te espedaçam,
Entre as nuas areias que te cingem...
Mas fosses morto, morto para o sonho,
Morto para o desejo de ar e espaço,
E não pairasse, como um bem ausente,
Todo o infinito em cima de teu túmulo!

Fosses tu como um lago,
Como um lago perdido entre montanhas:
Por só paisagem – áridas escarpas,
Uma nesga de céu como horizonte...
E nada mais! Nem visses nem sentisses
Aberto sobre ti de lado a lado
Todo o universo deslumbrante – perto
Do teu desejo e além do teu alcance!

Nem visses nem sentisses
A tua solidão sentindo e vendo
A larga terra engalanada em pompas
Que te provocam para repelir-te;
Nem, buscando a ventura que arfa em roda,
A onda elevasses para a ver tombando,
- Beijo que se desfaz sem ter vivido,
Triste flor que já brota desfolhada...

*

Mar, belo mar selvagem!
O olhar que te olha só te vê rolando
A esmeralda das ondas, debruada
Da leve fímbria de irisada espuma...
Eu adivinho mais: eu sinto... ou sonho
Um coração chagado de desejos
Latejando, batendo, restrujindo
Pelos fundos abismos do teu peito.

Ah, se o olhar descobrisse
Quanto esse lençol de águas e de espumas
Cobre, oculta, amortalha!... A alma dos homens
Apiedada entendera os teus rugidos,
Os teus gritos de cólera insubmissa,
Os bramidos de angústia e de revolta
De tanto brilho condenado à sombra,
De tanta vida condenada à morte!

*
 Ninguém entenda, embora,
Esse vago clamor, marulho ou versos,
Que sai da tua solidão nas praias,
Que sai da minha solidão na vida...
Que importa? Vibre no ar, acorde os ecos
E embale-nos a nós que o murmuramos...
Versos, marulho! Amargos confidentes
Do mesmo sonho que sonhamos ambos!

Vicente de Carvalho

In Poemas e canções, 1928 

Desiludida


VI

Sou como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca da água distante.

Bem sei que já me não ama,
E sigo, amorosa e aflita,
Essa voz que não me chama,
Esse olhar que não me fita.

Bem reconheço a loucura
Deste amor abandonado
Que se abre em flor, e procura
Viver de um sonho acabado;

E é como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca da água distante:

Só, perdido no deserto,
Segue em pós do seu carinho:
Vai só arrastando... e vai certo
Que morre pelo caminho.

Vicente de Carvalho

In Rosa, Rosa de Amor, 1923

A Ternura do Mar


No firmamento azul, cheio de estrelas de ouro
Ia boiando a lua indiferente e fria...
De penhasco em penhasco e de estouro em estouro,
Embaixo, o mar dizia:

“Lua, só meu amor é fiel tempo em fora...
Muda o céu, que se alegra à madrugada, e pelas
Sombras do entardecer todo entristece, e chora
Marejado de estrelas;

Ora em pompas, a terra, ora desfeita e nua
Como a folha que vai arrastada na brisa –
Aos caprichos do tempo inconstante flutua
Indecisa, indecisa...

Desfolha-se, encanece em musgos, aos rigores
Do céu mostra a nudez dos seus galhos mesquinhos,
A árvore que viçou toda folhas e flores,
Toda aromas e ninhos:

Cóleras de tufão, pompas de primavera,
Céu que em sombras se esvai, terra que se desnuda,
A tudo o tempo alcança, e a tudo o tempo altera...
- Só meu amor não muda!

Há mil anos que eu vivo a terra suprimindo:
Hei de romper-lhes a crosta e cavar-lhe as entranhas,
Dentro de vagalhões penhascos submergindo,
Submergindo montanhas.

Hei de alcançar-te um dia... Embalde nos separa
A largura da terra e o fraguedo dos montes...
Hei de chegar aí de onde vens, nua e clara,
Subindo os horizontes.

Um passo para ti cada dia entesouro;
Há de ter fim o espaço, e o meu amor caminha...
Dona do céu azul e das estrelas de ouro,
Um dia serás minha!

E serei teu escravo... À noite, pela calma
Rendilharei de espuma o teu berço de areias,
E há de embalar teu sono e acalentar tua alma
O canto das sereias.

Quando a aurora romper no céu despovoado,
Tesouros a teus pés estenderei, de rastros...
Ser amante do mar vale mais, sonho amado,
Que ser dona dos astros.

Deliciando-te o olhar, afagando-te a vista,
Todo me tingirei de mil cores cambiantes,
E abrir-se-á de meu seio a brancura imprevista
Das ondas arquejantes.

Levar-te-ei de onda em onda a vagar de ilha em ilha,
Tranqüilas solidões, ermas como atalaias,
Onde o marulho canta e a salsugem polvilha
A alva nudez das praias.

Ao longe, de repente assomando e fugindo,
Alguma vela, ao sol, verás alva de neve:
Teus olhos sonharão enlevados, seguindo
Seu vôo claro e leve;

Sonharão, na delícia indefinida e vaga
De sentir-se levar sem destino, um momento,
Para além... para além... nos balanços da vaga,
Nos acasos do vento.

Far-te-ei ver o país, nunca visto, da sombra
Onde cascos de naus arrombadas, a espaços
Dormem o último sono, estendidos na alfombra
De algas e de sargaços.

Opulentos galeões, pelas junturas rotas,
Vertem ouro, troféus inúteis, vis monturos,
Que foram conquistar às praias mais remotas,
Pelos parceis mais duros:

Flâmula ao vento, proa em rumo ao largo, velas
Desfraldadas, varando ermos desconhecidos,
Rudes ondas, tufões brutais, turvas procelas,
Sombra, fuzis, bramidos,

Todo o estranho pavor das águas afrontando,
Altivos como reis e leves como plumas,
Iam de golfo em golfo, em triunfo arrastando
Uma esteira de espumas.

Ei-los, carcaças vis d´onde o ouro em vão supura,
Esqueletos de heróis... Dei-os em pasto à fome
Silenciosa e sutil da multidão obscura,
Dos moluscos sem nome.

Essa estranha região nunca vista, hás de vê-la,
Onde, numa bizarra exuberância, a flora
Rebenta pelo chão pérolas cor de estrela
E conchas cor de aurora;

Onde o humilde infusório aspira às maravilhas
Da glória, sonha o sol, e, dos grotões mais fundos
De meu seio, levanta a pouco e pouco as ilhas,
Arquipélagos, mundos...

Lua, eu sou a paixão, eu sou a vida... Eu te amo.
Paira, longe, no céu, desdenhosa rainha!...
Que importa? O tempo é vasto, e tu, bem que reclamo!
Um dia serás minha!

Embalde nos afasta e embalde nos separa
A largura da terra e o fraguedo dos montes:
Hei de chegar aí de onde vens, nua e clara,
Subindo os horizontes...”

.........................................................

Na quietação da noite apenas tumultua
Quebrada de onda em onda a voz brusca do mar:
Corta o silêncio, agita o sossego, flutua
E espalha-se no luar...

Vicente de Carvalho

In Poemas e canções, 1928 

A Fonte e a Flor


V

"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria
Cantava, levando a flor.

"Deixa-me, deixa-me, fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar."

E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.

"Ai, balanços do meu galho,
"Balanços do berço meu;
"Ai, claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!..."

Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.

"Adeus, sombra das ramadas,
"Cantigas do rouxinol;
"Ai, festa das madrugadas,
"Doçuras do pôr-do-sol;

"Carícias das brisas leves
"Que abrem rasgões de luar...
"Fonte, fonte, não me leves,
"Não me leves para o mar!"

As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...

Vicente de Carvalho

In Rosa, Rosa de Amor, 1923