Mar,
belo mar selvagem
Das
nossas praias solitárias! Tigre
A
que as brisas da terra o sono embalam,
A
que o vento do largo eriça o pelo!
Junto
da espuma com que as praias bordas,
Pelo
marulho acalentada, à sombra
Das
palmeiras que arfando se debruçam
Na
beirada das ondas – a minha alma
Abriu-se
para a vida como se abre
A
flor da murta para o sol do estio.
Quando
eu nasci, raiava
O
claro mês das garças forasteiras;
Abril,
sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando
em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava
a primavera de ouro:
E
as leves garças, como folhas soltas
Num
leve sopro de aura dispersadas,
Vinham
do azul do céu turbilhonando
Pousar
o vôo à tona das espumas...
É
o tempo em que adormeces
Ao
sol que abrasa: a cólera espumante,
Que
estoura e brame sacudindo os ares,
Não
os sacode mais, nem brame e estoura;
Apenas
se ouve, tímido e plangente,
O
teu murmúrio; e pelo alvor das praias,
Langue,
numa carícia de amoroso,
As
largas ondas marulhando estendes...
Ah!
Vem daí por certo
A
voz que escuto em mim, trêmula e triste,
Este
marulho que me canta na alma,
E
que a alma jorra desmaiado em versos;
De
ti, de ti unicamente, aquela
Canção
de amor sentida e murmurante
Que
eu vim cantando, sem saber se a ouviam,
Pela
manhã de sol dos meus vinte anos.
Ó
velho condenado
Ao
cárcere das rochas que te cingem!
Em
vão levantas para o céu distante
Os
borrifos das ondas desgrenhadas.
Debalde!
O céu cheio de sol se é dia,
Palpitante
de estrelas quando é noite,
Paira,
longínquo e indiferente, acima
Da
tua solidão, dos teus clamores...
Condenado
e insubmisso
Como
tu mesmo, eu sou como tu mesmo
Uma
alma sobre a qual o céu resplende
-
Longínquo céu – de um esplendor distante.
Debalde,
ó mar que em ondas te arrepelas,
Meu
tumultuoso coração revolto
Levanta
para o céu, como borrifos,
Toda
a poeira de ouro dos meus sonhos.
Sei
que a ventura existe,
Sonho-a;
sonhando a vejo, luminosa,
Como
dentro da noite amortalhado
Vês
longe o claro bando das estrelas;
Em
vão tento alcançá-la, e as curtas asas
Da
alma entreabrindo, subo por instantes...
Ó
mar! A minha vida é como as praias,
E
o sonho morre como as ondas voltam!
Mar,
belo mar selvagem
Das
nossas praias solitárias! Tigre
A
que as brisas da terra o sono embalam,
A
que o vento do largo eriça o pelo!
Ouço-te
às vezes, revoltado e brusco,
Escondido,
fantástico, atirando
Pela
sombra das noites sem estrelas
A
blasfêmia colérica das ondas...
Também
eu ergo às vezes
Imprecações,
clamores e blasfêmias
Contra
essa mão desconhecida e vaga.
Que
traçou meu destino... Crime absurdo
O
crime de nascer! Foi o meu crime.
E
eu expio-o vivendo, devorado
Por
essa angústia do meu sonho inútil.
Maldita
a vida que promete e falta,
Que
mostra o céu prendendo-nos à terra,
E,
dando as asas, não permite o vôo!
*
Ah!
cavassem-te embora
O
túmulo em que vives – entre as mesmas
Rochas
nuas que os flancos te espedaçam,
Entre
as nuas areias que te cingem...
Mas
fosses morto, morto para o sonho,
Morto
para o desejo de ar e espaço,
E
não pairasse, como um bem ausente,
Todo
o infinito em cima de teu túmulo!
Fosses
tu como um lago,
Como
um lago perdido entre montanhas:
Por
só paisagem – áridas escarpas,
Uma
nesga de céu como horizonte...
E
nada mais! Nem visses nem sentisses
Aberto
sobre ti de lado a lado
Todo
o universo deslumbrante – perto
Do
teu desejo e além do teu alcance!
Nem
visses nem sentisses
A
tua solidão sentindo e vendo
A
larga terra engalanada em pompas
Que
te provocam para repelir-te;
Nem,
buscando a ventura que arfa em roda,
A
onda elevasses para a ver tombando,
-
Beijo que se desfaz sem ter vivido,
Triste
flor que já brota desfolhada...
*
Mar,
belo mar selvagem!
O
olhar que te olha só te vê rolando
A
esmeralda das ondas, debruada
Da
leve fímbria de irisada espuma...
Eu
adivinho mais: eu sinto... ou sonho
Um
coração chagado de desejos
Latejando,
batendo, restrujindo
Pelos
fundos abismos do teu peito.
Ah,
se o olhar descobrisse
Quanto
esse lençol de águas e de espumas
Cobre,
oculta, amortalha!... A alma dos homens
Apiedada
entendera os teus rugidos,
Os
teus gritos de cólera insubmissa,
Os
bramidos de angústia e de revolta
De
tanto brilho condenado à sombra,
De
tanta vida condenada à morte!
*
Ninguém
entenda, embora,
Esse
vago clamor, marulho ou versos,
Que
sai da tua solidão nas praias,
Que
sai da minha solidão na vida...
Que
importa? Vibre no ar, acorde os ecos
E
embale-nos a nós que o murmuramos...
Versos,
marulho! Amargos confidentes
Do
mesmo sonho que sonhamos ambos!
Vicente
de Carvalho
In
Poemas e canções, 1928
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